o lápis de Adília
Tenho por Adília a vaga simpatia tácita que me inspira, em princípio, qualquer membro da espécie que não me atropele na passadeira de peões. Nada me move, portanto, contra Adília – ou nada me movia, em abono da verdade, até que Adília, sem provocação aparente, abalroou o meu pacato sábado de Primavera.
Naquela urbana refrega com a Natureza, Adília moveu-se na minha direcção, brandindo o pau amarelo numa mão e um estafado livro de rimas na outra mão. Claro que isto é uma metáfora idiota, mas o dolo que lhe está subjacente – que baptizarei como “o Sítio do Pau Amarelo” - não está previsto no Código Penal. Daí o meu desgosto e a minha sugestão pós-traumática. Como verão.
Entretanto, noutro sítio, fiquei a saber (já desconfiava) que Adília vive com gatos desde 1982 e que "a Adília surgiu com um poema que escrevi no meu diário quando uma gata minha, a Faruk, desapareceu". Este episódio, ainda que trivial, merece uma breve confissão: os meus gatos - invariavelmente "Tarecos domesticus" – permanecem todos sem grande drama ou qualquer lágrima poética na minha memória. Honra aos gatos, que mesmo Faruks, não nos ligam peva. Mas percebe-se que, em cada década, o desaparecimento de um felídeo faça nascer uma Adília.
Dizia eu que Adília arremeteu na minha direcção, sem aviso prévio e, convenhamos, a um só tempo felina e fálica: por via da instalação com que nesse fim-de-semana me travou o passo já dentro do Jardim Botânico de Lisboa (com o qual, aliás, arrumarei contas na devida altura), diria que pegou de estaca na minha atenção.
Ao longe, enquanto me aproximava do esguio vulto lenhoso (?), julguei que se tratasse de espécie botânica rara, uma atracção carnívora de turistas, sabe-se lá, devidamente fixada no habitual latim que só o doutor Bagão Félix recita de cor e salteado. Mas não. Podia lá ser. Mesmo as espécies botânicas raras que emulam falos reluzentes e providos de arestas, se bem recordo as aulas de ciências que nos introduziam nos mistérios do gineceu e do androceu, não desenvolvem nervuras longitudinais com inscrições do tipo "Lápis rima com pénis". Porque não havia mais nada que fazer, li-as (a inscrição e o nome da autora, Adília) em voz alta, depois de verificar que não havia crianças por perto.
Li, por assim dizer, o Lápis de Adília, presa do mesmo espanto com que avaliaria as exactas proporções de um monolito de Kubrik plantado ali à Escola Politécnica: um lápis triunfal espetado na bonomia ecológica do visitante, um lápis rígido como todos os lápis da Viarco, de ponta afiada a romper o azul-hímen de Lisboa. E ao longo da haste, a exercitar a minha suspensão da dúvida ante o grosseiro trompe l’oeil do artista, segui religiosamente os carreiros estampados de formigas que trepavam sem pudor ao topo do estafermo, num movimento frenético de patinhas que não pude deixar de imaginar... assaz estimulante.
Desconheço (não constava do guia do jardim) se na frigidez da noite, na ausência da excitação solar, o lápis recolheria porventura a um estado de flacidez comatosa - para desabrochar novamente na manhã seguinte. Ou por que razão não havia aparas em redor da base – quando, por definição, os lápis minguam após a penetração suicida na afiadeira. Só Adília poderá esclarecer. Mas Adília sabe como ninguém que o lápis-que-rima-com-pénis merece cumprir o seu potencial de erecção estética: mais cedo ou mais tarde, já esgotado na sua função e vigor originais (que só Deus sabe como se exercem num Jardim Botânico), irá engrossar a colecção de Joe B. no CCB.
Cumpre dizer que fiz o resto da visita mais tranquilo, atento às árvores, aos arbustos e aos patinhos em procissão. Depois esqueci-me de Adília. Até hoje. Para a homenagear com uma ideia.
Por isso, na peugada das vacas que alguém recentemente andou a enxotar por Lisboa, deixo aqui a sugestão à nova Câmara (esse corpo cavernoso que se expandirá a partir de Julho):
- faça erguer a vereação, pelas suas próprias mãos calosas ou pelas dos assessores excedentários, esplêndidos falos às centenas pelos bairros e pelos condomínios de Lisboa, de Algés ao Parque das Nações, da Baixa à Estrada da Pontinha. Falos, não lápis. Mas atenção: falo de marzápios sérios, telúricos, de glandes apoplécticas decentemente extraídas à pedra, não aquela pívia conceptual que o Cutileiro bateu ao 25 de Abril.
Que mil erecções municipais aflorem, pois, em cada quilómetro quadrado alfacinha, que uma capital inteira assim atacada de priapismo cultural faça ecoar pelo menos até Alcochete o slogan granítico por que geme o Plano Nacional de Leitura: por exemplo, que "ler rima com foder".
Desculpe, Adília, mas isto nunca me tinha acontecido.
2 Comments:
E orvalho rima com Ramalho. Onde está o general quando tanto precisamos dele?
Magistral.
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