24.10.09

Os que vão cair saúdam-vos

Com tanta escadaria, travessa e praça por esse mundo, logo foi a mãe de John McCain escolher para se despenhar do alto dos seus 97 anos uma artéria no coração da Baixa, provavelmente num estado mais preocupante que o das suas próprias coronárias.

Costa & Salgado agradecem a inesperada promoção da calçada portuguesa na CNN e asseguram a continuação de quedas célebres e sérias na capital e arredores. Que não se quebre a tradição só para poupar a espinhela ao lisboeta.

Episódios menores como os desmoronamentos do Império e do canelone metropolitano, o decaimento moral do Intendente e das cotações da bolsa ou os resultados do teste do lápis entre as pivots dos telejornais não deslustram a inclinação dos alfacinhas e da merda dos seus pombos, na esteira de Júlio Verne, pelo centro da Terra: desde o Vasconcelos defenestrado no Terreiro do Paço até à meia Lisboa soterrada excepto o Marquês, dum Salazar descadeirado em S. Julião da Barra ao Caetano apeado no Carmo, da descida ao infernos do Chiado aos culminantes trambolhões do Santana à Lapa - abyssus abyssum invocat.

Salgado & Costa estão cientes da plutónica gravidade das suas funções (ou, pelo menos, da reduzida eficácia das loções capilares na sua geração) e ensaiam uma versão em si bemol do declive amanteigado da Calçada do Combro. Como? Quais adolescentes de beiça caída por uma quimera, tropeçam de ternura num contentor em Alcântara e espargatam-se em directo numa poia do cão do Beato. Por esta ordem ou segundo a escolha dos munícipes. Em todo o caso, este afundanço não me cheira.

14.10.09

carta aberta a quem nunca disse mal disto que atire a primeira pedra a umas senhoras de saia justa

Vi há pouco uma peça no Youtube que é, em si mesma, o elogio exacto a essa fenda electrónica por onde se bisbilhota o tédio e a mediocridade que vão pelo mundo.

Tinham-me assegurado que alguém (uma senhora de entre vós) se passeara pela cidade e arredores e falara forte e feio para a câmara, insultando o país e os seus habitantes e avós até às brumas de quinhentos, Pessoa e Camões incluídos. Eu estava entediado e fui ver. Com o grande lírico não se brinca (embora por aqui se despache muitas vezes para o lado: "vai chatear o Camões").

Fiquei decepcionado mas, sobretudo, aliviado. Eu, que sou cidadão do mundo com pouso habitual nesta metrópole, não me sentira insultado. Apalpei-me e era verdade, estava inteiro e vivo, imaculado. Abençoada incompetência. Com efeito, tratava-se de um mero video, pois boçal, pois feito à pressa e à medida do riso alarve que o percorreu e finalmente alvoroçou, no regresso triunfante ao estúdio, outras senhoras à espera de rir com qualquer coisa (um directo do tiroteio nas favelas? os gangs de mulheres da margem sul do Tejo?).

Já vi pior ou bem mais sofisticado. Or both. Até em vídeo caseiro. Mas serviu para confirmar - daí o meu alívio patrioteiro - que afinal existe, sendo triste e sendo enfado, estupidez q.b. dos dois lados do Atlântico (ou do equador, se falarmos de pecado).

Contudo, assanhou-se por aqui uma Lusitânia de blogues e comentadores que clama por vingança e sangue com sotaque... por enquanto em petições na rede. Mas basta um pretexto menor, outro deslize igual, um espirro mal calculado do Lula, e aí veremos o minhoto ferido, o alentejano humilhado, o lisboeta stressado - em suma, a cauda da Europa em uníssono -, num dia de má disposição e trânsito medonho, cuspir nas mãos (já que perdeu o hábito de o fazer nas fontes) e retornar ao imenso calçadão americano, desta vez para o invadir de soaps e chope e bacalhau à Gomes de Sá. E, não contente com a façanha, quem sabe, talvez expulsar um adido cultural e três dentistas pernambucanos, se não puder nacionalizar mais uma dúzia de jogadores de futebol. A escalada pode ser avassaladora: temo por um tio da minha mulher que vive em Santos e pela perenidade dos meus discos do Jobim.

Será isto justo? Será justa qualquer guerra por uma saia leve que se travou de humores venais por Lisboa? Não. Seria uma perda de tempo e uma cretinice (para a qual também resvala este comentário). Foi assim que Aquiles se perdeu. E, além disso, não nos podemos permitir duas frentes: já nos basta a doméstica.

Em conclusão: ora bolas, minhas Senhoras! Havia necessidade? Mas não receeis. O cenário dantesco que esbocei é simples fantasia. Nós somos estimados pela laranja e pelos brandos costumes - se descontarmos os vinte (!) anos de Salazar e respectivos devaneios de juventude. Prometo que sereis sempre bem-vindas ao reino dos Proenças e outros que tais, ainda mais se desfilardes em pele-de-galinha no Carnaval dos Manuéis.

Vosso.

P.S. - Vou ouvir um pouco de Tom Jobim enquanto não não for proibido. E ficai a saber que nós próprios, pelo menos desde o Eça, consideramos o país uma verdadeira choldra. Não nos abala quem quer mas quem sabe. Chegareis lá com pouco esforço: afinal, como canta o Chico, "todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo, além da sífilis, é claro".